domingo, 23 de fevereiro de 2014

Interpretação do poema

um risco na página
um gesto furtivo
um movimento
de queda
na sombra
da sombra
de um corpo, uma boca
: alguém chama — palavras contra
o sentido, contra a direcção
do vento
(Manuel Gusmão)

  O poema fala sobre a própria criação de um poema, sobre as fases da escrita e do pensamento do poeta durante a sua elaboração.
  A escrita de um poema começa de forma hesitante: uma linha sobre o papel, uma palavra, uma ideia. Assim como refere o primeiro verso («um risco na página»), é do primeiro traço que nasce o poema. Quando o sujeito poético – que seria o próprio autor – começa o poema, os seus movimentos são prematuros, subtis e curtos («um gesto furtivo»), as ideias ainda estão a desabrochar, ainda são confusas e desorganizadas.
  O poema também fala sobre a própria conceptualização do poema. Para escrevê-lo o sujeito poético tem de ir ao fundo de si mesmo, da sua mente, da sua experiência de vida e dos seus sentimentos. Assim como diz nos versos quarto, quinto e sexto, é preciso cair dentro das sombras, dentro do irreal, e procurar as coisas que não podem ser visualizadas à superfície.
  As palavras organizam-se, seguem as ideias, e ainda assim não têm necessariamente de fazer sentido. A poesia implica ver para além do que é visível, para além do sentido literal das palavras, do que as pessoas que a leem estariam à espera (por isso, é feita de «palavras contra o sentido»).
  Penso que o poema, para além de falar sobre a criação do próprio poema, também fala de como ele pode ser interpretado por cada pessoa. Os leitores começam por olhar para o poema, para as palavras que estão escritas nele, e depois vão furtivamente desvendando os seus significados. Assim como o autor, têm de utilizar as suas experiências de vida para interpretar o poema, têm de adentrar nos cantos da sua própria mente para encontrarem o seu significado; e têm de criar a sua ideia do poema, independentemente dela condizer com a do autor, ou com a de outro leitor. É preciso dar-lhe um sentido pessoal, seja real ou não.


(Será que o/um poema se faz a si próprio?)

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