O ser humano é uma das mais interessantes
espécies, não sendo por isto superior a qualquer outra, praticamente, mas um
acidente feliz da natureza e resultado de eventos quase mundanos. A única parte
verdadeiramente significante do ser humano é a dimensão mental. A mente, a
psique. A capacidade de raciocinar e sentir é o que separa o ser humano de
todas as outras espécies.
Porém,
sendo que até o mais ideal dos sistemas tem falhas, o ser humano, espécie tão
brilhante e capaz, pináculo da grandeza, não passa de uma compilação de
defeitos.
O
ser humano é, para mim, naturalmente mau. Esta questão da natureza do homem é
muito controversa, dado que as pessoas, pela sua bela divergência têm
tendências pessoais diferentes. Porém, a natureza humana tem para mim uma raiz
malévola. Acredito que ninguém se torna mau pelas circunstâncias. A única coisa
que as circunstâncias podem fazer é despoletar essa natureza soturna. Lamento
desiludir todos os crentes na bondade humana, mas pelo menos parcialmente, será
bastante evidente que não passamos de uma luta constante entre as trevas e
alguns feixes de luz, sendo que a escuridão brilha mais que a luz,
independentemente do quão paradoxal possa parecer.
Esta
infeliz tese fundamenta-se sem qualquer esforço por si própria. As marcas da
maldade humana são mais do que evidentes. Elas marcam de escarlate a história.
É triste mas a guerra foi-se banalizando ao longo dos tempos como uma
alternativa admissível a qualquer conflito, derramar sangue foi-se tornando
cada vez mais leviano, retirar os direitos a alguém, rebaixar alguém. Roubar a
dignidade de um ser humano é tao recorrente como deplorável. Tudo isto causado
por seres humanos evidentemente. O ser humano consegue construir o mais horrível
dos textos com as mais belas palavras. Esta natureza ultrapassa a dimensão
animal. Trata-se de um crescimento decadente da psique.
Diria,
exemplificando, que o ser humano é como um bolo. A base do bolo é a farinha. No
caso do ser humano, por muito bons que sejam os restantes ingredientes, a
farinha será sempre sombria. Por muito bom que pareça ser o bolo, a sua raiz, o
seu estado primordial for de escuridão pura.
Os exemplos são inúmeros. A
guerra é o mais catastrófico evento, em termos de causalidades e dimensão.
Sucintamente, a guerra é uma panóplia ridícula de motivações não coincidentes
que resulta em destruição. É muito difícil construir uma civilização em que não
haja quaisquer conflitos. Pode-se afirmar que tal resulta da divergência
humana, no que concerne as opiniões e as crenças. No entanto, o ser humano,
sendo possuidor de tais opiniões não tem qualquer direito de as impor ao
próximo.
Por outro lado, algumas guerras
resultam de motivações admissíveis: a liberdade própria ou alheia, pôr termo à
injustiça recorrente entre outras. No entanto, a minha tese prevalece. Ora, a
motivação só existe porque existe também injustiça, sendo essa injustiça criada
exatamente pelo defeituoso ser humano. Isto é, nunca teriam os Aliados
declarado guerra ao Bloco Central, se estes não fossem responsáveis por
diversas injustiças e atos que degradam tanto o ser humano como o coletivo.
Há quem creia na bondade do ser
humano. O sacrifício, o altruísmo, o amor. Obviamente que estas e muitas mais
situações revelam que o ser humano é também uma espécie bondosa, “com coração”
e interessada em promover o bem. São estas as exibições dos “feixes de luz” que
mencionei. Há pessoas que ascendem a anjos, ao etéreo. Infelizmente, também
Ícaro com as suas esbeltas e promissoras asas foi dominado pela ambição. Não
que todos sejamos maus, não que todos sejamos más pessoas, mas que todos tenhamos
maldade, escuridão dentro de nós.
De certa forma isto resulta de
uma tendência animal. Foi o egoísmo que permitiu a ascensão desta espécie.
Egoísmo esse que não reflete mais do que uma tendência natural a prevalecer.
Mas, se foi o “egoísmo” que permitiu chegar ao estado atual, se este “egoísmo”
está na base do nosso ser, será possível negar a maldade residente dentro de
nós? Será que a um assassino que se confesse daremos o nosso honesto perdão e
condolências pelos tormentos?
Na minha opinião, o que nos torna
verdadeiramente humanos é capacidade de sentir. O
remorso é o que diferencia o humano do pseudo-humano. Todo o ser erra, mas
apenas aquele que o reconhece é verdadeiramente humano. Outra propensão humana
é a loucura. Todo o ser humano, com interior negro, vive na corda bamba: a
circunstância é a cruel mão invisível que propõe o ser à queda espiral e eterna
para aquela que é uma vida desordenada, um mundo oco ao contrário. A loucura
acaba por ser uma manifestação da natureza escura do ser humano e, por isso
mesmo, a mais bela e fascinante área da psique. A psicopatia reflete exatamente
o distúrbio da mente em que se observa a ausência do remorso. Ninguém tem culpa
da sua própria patologia mas a verdade é que elas decorrem da natureza malévola
do ser humano.
A verdade é que, no fundo, somos
todos loucos. Alguns de nós conseguem lidar com essa loucura e controlá-la,
outros nem se apercebem dela porque, felizmente, as suas vidas são fortemente
iluminadas, outros acabam por se entregar a ela, passam o ponto de não retorno.
Tem tanto de assustador como de fascinante. Todos podemos convergir num ponto:
a mistura de preto e branco pode não deixar o preto intacto mas decerto tinge o
branco de forma implacável. No mesmo ponto, é impossível alguém ser
completamente “boa pessoa”. Qualquer um o reconhece, basta olhar para a
história ou, até mais “perto”, para o próximo, para o espelho. É claro. E é triste.
Com
esta infeliz conclusão de que estamos todos danados, trago alguma felicidade. O
mundo não tem de ser um sítio infeliz. Temos de nos agarrar com toda a força e
determinação à luz que existe nos nossos dias. A memória é o mais fascinante
dos exercícios. Memória de tempos inocentes, tempos mais felizes. Memória da
primeira flor a desabrochar na primavera, a primeira folha corada a cair no
outono, o primeiro raio de sol num dia perdido, do platónico do dia, do branco
mármore clássico, da simplicidade natural da Renascença, da solene
extravagância do berrante barroco, da sua música tanto romântica como
aterradora, da ironia vitoriana da moral extrema com a marginalidade londrina,
a inocência aristocrática da Belle Époque
e assim permanecemos em busca do tempo perdido, da beleza efémera que oculte a
nossa soturna natureza. Assim é possível a redenção parcial. E rezemos.
Lembremos e sobretudo rezemos que estejamos muito longe de um abismo, pois
reside aí o nosso fim.
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