Era uma tarde de inverno, num domingo
cuja data certa não me recordo. Chovia de forma deprimente, como se as gotas de
chuva apagassem a beleza do mundo. Eu sempre achei a chuva incómoda, claro que
tinha as suas vantagens, mas incómoda na mesma. Chuva sempre foi, para mim,
sinónimo de cinzento, tristeza, e a ausência de cor provoca-me sempre um
empobrecimento de espírito. Sem nada de interessante para me ocupar o tempo,
olhei pela janela, como tantas vezes o fiz antes. Encostei a cara à janela e o
vidro ficou embaciado. Era um hábito singular mas sempre encontrei calma e
serenidade neste estranho ato. Olhar pela janela… Parece tão básico e
insignificante mas sempre me distraiu e fascinou, independentemente da
paisagem. Talvez a janela me dê a sensação de proteção do que se encontra para
além dela, ou talvez seja somente um velho hábito. Ao olhar pela janela não
encontrei calma e entusiasmo na relva verde, nas árvores baixas, no gradeamento
verde-escuro, no muro amarelo nem nas casa dos vizinhos mas comecei a pensar, a
imaginar. Comecei a recuar no tempo na minha própria dimensão. Dei por mim a
questionar o que teria sido a minha casa, a minha rua, os sítios por onde passo
no passado. Teria havido algum acampamento pré-histórico no sítio onde, hoje,
vejo televisão? Teria o terreno de minha casa sido visitado por Romanos? A partir
daí comecei a divagar. Comecei a pensar que o chão que piso e os locais por
onde me desloco da forma mais casual possível poderiam, no passado, ter sido um
castelo medieval onde fidalgos dirigiam as suas vastas propriedades, onde pequenas
meninas aprendiam a ser damas de apreço e estima. Talvez a minha rua teria
visto os amores e desamores de jovem casais, numa época mágica e mítica. Teriam
sábios pisado o que eu piso? A chuva que tanto me incomoda terá quiçá
incomodado reis e rainhas, altos senhores e senhoras ou simples camponeses que
apesar de não terem deixado lembranças no mundo, encontram espaço no meu
peculiar pensamento. Por onde caminho terá caminhado algum marinheiro que foi à
Índia com Vasco da Gama ou algum corajoso que deu a vida pelo país sem qualquer
apontamento na história mas com prestígio amiúde nas minhas ilusões? Imagino
importantes senhoras do Barroco a aplicarem pó de arroz onde eu observo o meu
simples reflexo, a pensarem na vida que levavam, com todo o fausto e pompa, com
penteados tão altos como a honra dos cavaleiros, senhoras essas vestindo
grandiosos e magnificentes vestidos, com os quais mal respiravam. Visiono
pequenas crianças a correrem no jardim. Imagino história a ser feita, batalhas
a serem travadas, heróis a serem aclamados, perdedores com orgulho ferido.
Imagino a subtileza e inocência de épocas mais simples, em que a palavra
importava e a cultura era seriamente valorizada. Todos estes momentos
históricos unidos pela chuva, que ao contrário das Pessoas não tem preferências
nem preconceitos. Como invejo aquela chuva! Já viu tantas coisas magníficas,
tantos períodos da história que me fascinam tremendamente. Desejava também eu
experienciar tais coisas, ver outras realidades para além da contemporânea onde
tudo carrega estigma, onde as pessoas são más, onde qualidades como a inocência
e bondade são negligenciadas, onde a menor gafe ou mal-entendido carrega tal negatividade
que despoleta repugno pelas pessoas com as quais convivemos. Quando estou
cansada do mundo em que vivo, penso na chuva, que tanto viveu. E fascina-me
como é que eu, humana e preanunciada como superior às outras espécies, invejo
tal coisa, que até me incomoda, e na qual procuro conforto. Nesta tarde de domingo
vi a chuva de outra forma – não como algo negativo, nem exatamente como algo
apreciável, mas como uma escapatória à realidade com a qual me deparo. Para
além disto, sempre que sou abordada por estes pensamentos, concluo que sou
muito diferente das outras pessoas. Sou estranha, peculiar, e não me importo de
o ser. Ser igual aos outros não é interessante. Espero que a sociedade permita
a existência desta estranheza, não por mim mas para que daqui a alguns séculos
haja alguém que se lembre não só dos belos e famosos mas também daqueles que
nenhuma marca significativa deixaram na história. Se eu própria, daqui a alguns
anos, for transparente numa dimensão global, contento-me com a ideia da ‘estranha
rapariga que gosta de pensar na chuva’ que outrora fora.
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