quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Ser humano - propensões primordiais para o mal

          O ser humano é uma das mais interessantes espécies, não sendo por isto superior a qualquer outra, praticamente, mas um acidente feliz da natureza e resultado de eventos quase mundanos. A única parte verdadeiramente significante do ser humano é a dimensão mental. A mente, a psique. A capacidade de raciocinar e sentir é o que separa o ser humano de todas as outras espécies.
            Porém, sendo que até o mais ideal dos sistemas tem falhas, o ser humano, espécie tão brilhante e capaz, pináculo da grandeza, não passa de uma compilação de defeitos.
            O ser humano é, para mim, naturalmente mau. Esta questão da natureza do homem é muito controversa, dado que as pessoas, pela sua bela divergência têm tendências pessoais diferentes. Porém, a natureza humana tem para mim uma raiz malévola. Acredito que ninguém se torna mau pelas circunstâncias. A única coisa que as circunstâncias podem fazer é despoletar essa natureza soturna. Lamento desiludir todos os crentes na bondade humana, mas pelo menos parcialmente, será bastante evidente que não passamos de uma luta constante entre as trevas e alguns feixes de luz, sendo que a escuridão brilha mais que a luz, independentemente do quão paradoxal possa parecer.
            Esta infeliz tese fundamenta-se sem qualquer esforço por si própria. As marcas da maldade humana são mais do que evidentes. Elas marcam de escarlate a história. É triste mas a guerra foi-se banalizando ao longo dos tempos como uma alternativa admissível a qualquer conflito, derramar sangue foi-se tornando cada vez mais leviano, retirar os direitos a alguém, rebaixar alguém. Roubar a dignidade de um ser humano é tao recorrente como deplorável. Tudo isto causado por seres humanos evidentemente. O ser humano consegue construir o mais horrível dos textos com as mais belas palavras. Esta natureza ultrapassa a dimensão animal. Trata-se de um crescimento decadente da psique.
            Diria, exemplificando, que o ser humano é como um bolo. A base do bolo é a farinha. No caso do ser humano, por muito bons que sejam os restantes ingredientes, a farinha será sempre sombria. Por muito bom que pareça ser o bolo, a sua raiz, o seu estado primordial for de escuridão pura.
Os exemplos são inúmeros. A guerra é o mais catastrófico evento, em termos de causalidades e dimensão. Sucintamente, a guerra é uma panóplia ridícula de motivações não coincidentes que resulta em destruição. É muito difícil construir uma civilização em que não haja quaisquer conflitos. Pode-se afirmar que tal resulta da divergência humana, no que concerne as opiniões e as crenças. No entanto, o ser humano, sendo possuidor de tais opiniões não tem qualquer direito de as impor ao próximo.
Por outro lado, algumas guerras resultam de motivações admissíveis: a liberdade própria ou alheia, pôr termo à injustiça recorrente entre outras. No entanto, a minha tese prevalece. Ora, a motivação só existe porque existe também injustiça, sendo essa injustiça criada exatamente pelo defeituoso ser humano. Isto é, nunca teriam os Aliados declarado guerra ao Bloco Central, se estes não fossem responsáveis por diversas injustiças e atos que degradam tanto o ser humano como o coletivo.
Há quem creia na bondade do ser humano. O sacrifício, o altruísmo, o amor. Obviamente que estas e muitas mais situações revelam que o ser humano é também uma espécie bondosa, “com coração” e interessada em promover o bem. São estas as exibições dos “feixes de luz” que mencionei. Há pessoas que ascendem a anjos, ao etéreo. Infelizmente, também Ícaro com as suas esbeltas e promissoras asas foi dominado pela ambição. Não que todos sejamos maus, não que todos sejamos más pessoas, mas que todos tenhamos maldade, escuridão dentro de nós.
De certa forma isto resulta de uma tendência animal. Foi o egoísmo que permitiu a ascensão desta espécie. Egoísmo esse que não reflete mais do que uma tendência natural a prevalecer. Mas, se foi o “egoísmo” que permitiu chegar ao estado atual, se este “egoísmo” está na base do nosso ser, será possível negar a maldade residente dentro de nós? Será que a um assassino que se confesse daremos o nosso honesto perdão e condolências pelos tormentos?
Na minha opinião, o que nos torna verdadeiramente humanos é capacidade de sentir. O remorso é o que diferencia o humano do pseudo-humano. Todo o ser erra, mas apenas aquele que o reconhece é verdadeiramente humano. Outra propensão humana é a loucura. Todo o ser humano, com interior negro, vive na corda bamba: a circunstância é a cruel mão invisível que propõe o ser à queda espiral e eterna para aquela que é uma vida desordenada, um mundo oco ao contrário. A loucura acaba por ser uma manifestação da natureza escura do ser humano e, por isso mesmo, a mais bela e fascinante área da psique. A psicopatia reflete exatamente o distúrbio da mente em que se observa a ausência do remorso. Ninguém tem culpa da sua própria patologia mas a verdade é que elas decorrem da natureza malévola do ser humano.
A verdade é que, no fundo, somos todos loucos. Alguns de nós conseguem lidar com essa loucura e controlá-la, outros nem se apercebem dela porque, felizmente, as suas vidas são fortemente iluminadas, outros acabam por se entregar a ela, passam o ponto de não retorno. Tem tanto de assustador como de fascinante. Todos podemos convergir num ponto: a mistura de preto e branco pode não deixar o preto intacto mas decerto tinge o branco de forma implacável. No mesmo ponto, é impossível alguém ser completamente “boa pessoa”. Qualquer um o reconhece, basta olhar para a história ou, até mais “perto”, para o próximo, para o espelho. É claro. E é triste.

        Com esta infeliz conclusão de que estamos todos danados, trago alguma felicidade. O mundo não tem de ser um sítio infeliz. Temos de nos agarrar com toda a força e determinação à luz que existe nos nossos dias. A memória é o mais fascinante dos exercícios. Memória de tempos inocentes, tempos mais felizes. Memória da primeira flor a desabrochar na primavera, a primeira folha corada a cair no outono, o primeiro raio de sol num dia perdido, do platónico do dia, do branco mármore clássico, da simplicidade natural da Renascença, da solene extravagância do berrante barroco, da sua música tanto romântica como aterradora, da ironia vitoriana da moral extrema com a marginalidade londrina, a inocência aristocrática da Belle Époque e assim permanecemos em busca do tempo perdido, da beleza efémera que oculte a nossa soturna natureza. Assim é possível a redenção parcial. E rezemos. Lembremos e sobretudo rezemos que estejamos muito longe de um abismo, pois reside aí o nosso fim.

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